O nascimento do pensamento contemporâneo:
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Verdade ideológica: Com o grande avanço das ciências,
sobretudo devido a sua característica notadamente materialista, aliado ao
avanço da nova organização econômico-social industrialista
nascente, desenvolveu-se um modo de pensar também materialista. Se este viés oferece objetividade e credibilidade
para a ciência, o mesmo não pode se dizer do ponto de vista puramente humano.
Crer que o ser humano é pura e meramente matéria coloca em xeque sua dignidade.
A finitude do homem pesa sobre seus ombros e o coloca em desespero. A morte
como fim esvazia nossas esperanças, e não nos diferencia de qualquer massa de
matéria em decomposição. Fundado nessa ideia Ludwig Feuerbach a leva ao extremo
e admite que foi justamente por conta deste temor da finitude que o homem
ergueu para si mesmo algumas ilusões. Criou um deus protetor e uma imagem
celestial, somente para abrandar sua dor. Todavia, ao criar tal ilusão acabou por
oferecer a ela demasiado grau de credibilidade a tal ponto que nem sequer
recorda ter sido ele mesmo o criador da ideia. Acabou por se tornar alheia ao
próprio homem. O homem acabou por se alienar de sua própria criação. Na noção
de alienação humana Feuerbach afirma
que o homem criou deus sua imagem e semelhança. Alheio à sua própria criação
deu-lhe forças e poder e passou a temer esse mesmo poder. Render-lhe tributos e
rituais.
Ainda que não em torno do mesmo
contexto de Feuerbach, Karl Marx assimila a noção de alienação e adapta seu teor para o desenvolvimento de seu próprio
pensamento crítico da organização social nascente. Os tempos eram difíceis e a
sociedade ainda lutava para se desvencilhar da pobreza e da escassez, legado de
séculos de domínio absolutista. Um êxodo rural trouxe para cidades ainda mal
preparadas para receber tamanho contingente, uma horda de pessoas pouco
habituadas à higiene, tanto quanto ao convívio social. Ao redor das indústrias
se acotovelavam trabalhadores sujeitos a condições severas e insalubres de
trabalho. Alguns míseros trocados eram suficientes para atrair largo
contingente de operários dispostos a sacrifícios. Todavia esses sacrifícios
eram talvez uma escolha melhor do que uma possível morte no campo. Esse
trabalhador do campo vendia ao proprietário da indústria sua força de trabalho
que a comprava pelo menor valor que pudesse negociar. A negociação era bastante
desigual. As extensas horas de trabalho significavam para um, uma benção e,
para o outro a potencialidade do lucro. Vendendo muitas de suas horas de
trabalho restavam ao fim da jornada, uma mente extenuada e um corpo esfacelado
que precisava repor suas forças para o próximo dia árduo. Com isso, grande
parte da vida desse trabalhador não lhe pertencia mais. Era agora propriedade
privada alheia. Jornada que se cumpria invariavelmente de segunda a sábado, mas
no domingo, a cerimônia religiosa oferecia o conforto necessário, senão para o
corpo, ao menos para a alma do trabalhador. Suas dores se arrefeciam e suas
esperanças por dias melhores se renovavam. Mas, no entender de Marx essa era
apenas mais uma alienação. A religião conspirava para oferecer legitimidade ao
modelo opressor. Funcionava como um anestésico que retirava tanto a dor física
quanto a dor da opressão e dominação. Daí a expressão de que a religião seria o ópio do povo. Mas não era só a religião que cumpria esse papel.
Mesmo a moral estimulava o esforço e o sacrifício. A política corroborava o
modelo, as leis ofereciam a legitimação necessária. Não que o modelo opressor
tivesse realmente aspectos de verdade, mas era somente uma pseudo-verdade,
forjada por uma ideologia dominante
para que seguisse adiante com seu modelo. Eram tanto ideias, filosofias,
morais, leis, preceitos religiosos e tudo mais orquestrados por aqueles que se
ocupavam do lucro e da exploração dos proletários. Funcionavam como
justificativas para o sacrifício de muitos. Uma iniciativa privada com uma
honesta esperança de progresso da humanidade ou talvez um modo de lhes retirar
a culpa por uma opressão desumana. Nisso se esboça o que poderíamos chamar de
uma definição do que encerraria o conceito de ideologia: um conjunto de ideias, de práticas, filosofias e morais,
arquitetadas e edificadas com finalidades específicas e interesses específicos.
A disseminação e aceitação dessas ideias oferecem a aparência de “verdade”
desejada pela ideologia. Seus edificadores, mesmo, a defenderão, justamente por
conhecer suas finalidades e até por verem, bem lá no fundo, o benefício que
poderá causar. Senão para todos, ao menos para alguns.
Diferença entre moral e ética:
Antes de falarmos da crítica feita por
Nietzsche à moral, é conveniente distinguirmos entre os conceitos de moral e ética. Muitos têm como sinônimos esses conceitos que na verdade são
complementares. Primeiro devemos dizer que não é possível dizer minha moral ou sua moral. Quando falamos de moral, nos referimos à moral aceita
tradicionalmente em uma cultura.
Dizemos de cultura a tradição forjada ao longo do tempo por um grupo ou
subgrupo social. Uma etnia, uma religião, um grupo de pessoas. Mas moral tem a ver
tanto com costumes, tanto quanto com condutas. Poderíamos dizer que moral é, por assim dizer, um grande conjunto de condutas socialmente aceitas.
Tanto quanto de condutas socialmente recriminadas. São condutas que,
pressupostamente honrariam ou não determinados valores prezados pela sociedade. Contudo, no mais das vezes estes
valores ficam disfarçados no interior dessas condutas. Com o tempo essas
condutas socialmente aceitas formaram um grande conjunto de condutas ditas como
certas. As outras, as que
supostamente não honrassem tais valores comporiam o conjunto de condutas erradas. Assim, seria justo dizer que a
moral segrega as condutas em dois grandes grupos de certos e errados. Contudo,
essas regras de certo e errado não precisam estar escritas em quaisquer
documentos ou códigos morais. Absorvemos essas regras através de aprovações ou
reprovações sociais. Enquanto algumas condutas são estimuladas outras são
censuradas. Com isso vamos absorvendo a cultura dessa sociedade e aprendendo
como interagir nela.
Vamos tentar aclarar melhor essa ideia
com uma pequena metáfora bastante didática. Num belo natal, um homem liga para
sua esposa e informa que já comprou o pernil para a ceia como era tradição na
família dela. A esposa, embora satisfeita, pergunta se o marido exigiu que o
vendedor cortasse a cabeça do osso do pernil. Aquela parte do pernil onde fica
exposto o osso. O marido sem jeito alega que não tomou tal cuidado, mas se
mostra intrigado com a solicitação. Sem entender o sentido, pergunta para a
esposa que alega ser tradição na família e que sua mãe sempre fez do mesmo modo
desde que ela era criança. O marido, ainda sem entender direito, atende a
solicitação, mas perdura em sua consciência a dúvida: para que serve cortar a
cabeça do osso do pernil? Já na ceia, interpela a sogra feliz e contente com
toda a família reunida e sutilmente elabora a pergunta do modo mais direto
possível. A resposta vem em tom taxativo: - nós sempre cerramos o osso do
pernil. Mas ainda ficou faltando saber qual o sentido, o propósito da ação.
Então o marido insistiu e ficou sabendo que a tradição remontava aos tempos da
avó. Por sorte ela, ainda que em idade avançada, permanecia bastante lúcida.
Abordou, então, a “nona” carinhosamente em busca da informação. A senhorinha
alegou que não era necessário cerrar
a cabeça. Inconformadas, a filha e a neta foram questionar a lúcida vovó que
sempre ao longo de sua vida tomara tal providência. Em tom sereno ela
finalmente esclarece a dúvida. Em sua época o forno que ela usava para assar o pernil era pequeno e não cabia o pernil inteiro, por isso era preciso
cerrar a cabeça, mas com os modernos fornos de hoje em dia, tal medida era
desnecessária. Em nossa cultura também permanecem umas tantas condutas que
poderiam ser modificadas, adaptadas, pois os valores que estão honrados já não
fazem mais sentido, porém, pelo fato de os valores não serem assim tão
aparentes, as regras teimam em não mudar.
Mesmo o conceito de ética não admite
que se diga: minha ética ou sua ética. Tampouco a ética de uma determinada
empresa ou país. A ética pretende e se esforça para ser geral, universal e
necessária. Mas diferente da moral ela não se concentra primeiramente em
condutas, tampouco em certos ou errados. O objetivo da ética é a de estudar as
diversas morais existentes e, com isso, descobrir, pinçar e aclarar, os valores que oferecem sentido às
condutas. Ela faz isso no intuito de verificar a validade e atualidade dos
valores, tanto quanto de perceber o estatuto hierárquico desses valores. Com
isso a ética pode ranquear os maiores valores humanos e estabelecer os princípios que, em tese, seriam aceitos
e honrados em qualquer cultura, em qualquer tempo. Hospitalidade, seriedade,
fidelidade são exemplos de valores prezados
em algumas culturas, mas em outras não teriam tamanha importância. Todavia,
seria raro que alguma cultura desse importância menos digna para o amor, a liberdade, o alimento, o abrigo, entre outros princípios. De
sorte que a tarefa da ética é menos o de consolidar esses valores, mas de constatar que são importantes em
diversas culturas e, com isso, explicitar todos os valores encontrados.
A ética elucida esses valores e
demonstra sua importância, de tal modo que, cada qual ao elaborar de modo
autônomo sua própria conduta, possa ter a liberdade de honrar tais valores
conscientemente. Essa é outra característica que diferencia ética e moral. A conduta
moral tem por característica a heteronomia,
isto é o fundamento que oferece sentido a tal ação não é escolhido
deliberadamente pelo autor da ação, mas chegou a ele através da tradição, da
cultura. O indivíduo é até certo ponto coagido a agir de determinado modo e a
honrar aquele valor, mesmo que ele até nem mesmo saiba qual é. Na ética, a
responsabilidade por honrar ou não o valor sai das mãos da sociedade e passa
para o indivíduo que elabora de modo autônomo
sua própria conduta. Claro que nesse caso a responsabilidade é toda do
indivíduo e ele será mais ou menos ético, quanto mais souber honrar tais
valores. Contudo não podemos perder de vista o próprio conceito de ideologia. Com frequência vemos condutas sendo
infantilmente justificadas em pomposos valores que no mais, pretendem apenas
justificar determinada besteira que se fez sem consciência. Apenas para não
sofrer julgamentos e desaprovações sociais. Ou mesmo em casos de determinada
conduta acabar por afrontar algum valor ideológico, forjamos justificativas
também ideológicas aproveitando de nossa capacidade de imaginação. No final,
quando não nos encaminhamos para a verdade e para princípios de real valor,
acabamos por nos desembocar num verdadeiro confronto de hipocrisias sociais. Possivelmente
são elas que instauraram a crise ética que vivemos em nossos dias atuais. São
clientes fingindo se agradar de determinado produto quando na verdade lhe
importa o preço. De outro lado o fornecedor exaltando a qualidade e a
tecnologia do mesmo produto quando na verdade ele está fadado a se tornar
obsoleto em breve e pretende-se apenas desovar o estoque para substituí-lo por
outro mais caro ou que ofereça melhor lucratividade ou comissão. Cada qual
apoiado em “sua verdade” vai embora tendo a impressão de que levou alguma
vantagem sobre o outro. Apoiados em falsas verdades acabamos por nos habituar a
viver em meio a toda essa crise conceitual, carente de verdades e de valores
reais.
Genealogia da moral
Um vigoroso pensamento crítico se
coloca à nossa disposição para nos auxiliar a elucidar o percurso histórico da
moral vigente no final do século XIX. Nietzsche nos mostra que os
acontecimentos históricos nos encaminharam a considerar uma determinada moral,
de uma cultura bastante específica, válida para nossa cultura em geral, mas que
acabou por sepultar outra moral que poderia talvez exprimir mais e melhor a
natureza do ser humano. Foram menos a validade e vigor de seus valores e mais
as condições históricas características que promoveram a disseminação da moral
dessa cultura, solapando outras morais talvez até melhores. Nietzsche, profundo
conhecedor da cultura grega, via certa nobreza de expressão e de caráter na
conduta grega expressa em farta literatura. Apesar da índole grega para uma
conduta beligerante, havia uma maneira aristocrática de se portar perante o
duelo e a batalha. Se, num duelo ou numa batalha, um oponente por azar se visse
em apuros, largado ao chão após uma eventual queda, ao invés de aproveitar do
ensejo da situação e estocar seu contendor no chão, aproveitando sua
fragilidade momentânea, ele exigiria que o mesmo se erguesse e voltasse a lutar
dignamente. Eram valorizadas a bravura, a honra, a superioridade digna de cada
um. Mesmo o derrotado tinha seu valor e quanto mais oferecesse dificuldades,
mais valorizaria a vitória de seu opositor. Cada ato era um ensejo para a
expressão de certa dignidade natural que Nietzsche nomeou de moral
aristocrática.
Foram os “bons” mesmos, isto é, os
nobres, poderosos superiores em posição e pensamento, que sentiram e
estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em
oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu.
(NIETZSCHE, 1998, p 29)
O que é bom, assim o é, em si, sem
depender de julgamentos outros que não os do próprio autor da ação. Não há aqui
um receio de reprovação social. O que é bom é demonstração de altivez,
liberdade, autonomia e brilho próprios. Todavia, vistas de outro modo, essa
conduta pode parecer egoísta. É que; como diz Nietzsche:
Enquanto a moral nobre nasce de um
triunfante sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um ‘fora’, um
‘outro’, um ‘não-eu’[...] (NIETZSCHE, 1998, p29)
É como se houvesse certo ressentimento
vindo dos olhos de quem julga a conduta sem a mesma altivez. Vista de um ângulo
mais baixo tem aparência de opressão e de maldade. Do ponto de vista mais alto,
essa opressão visa insuflar a dignidade do oprimido para que se erga o gigante
que adormece em seu peito. O objetivo é menos o de rebaixar o oponente, mas de
mexer com seus brios e reacender a chama ora enfraquecida. Um chacoalhão para
acordar a dignidade que adormece encoberta pelo medo e pela culpa. Enquanto a
moral aristocrática é altiva, imponente, nobre, garbosa, que se afirma nas mais
pequenas atitudes, a moral escrava é baixa, demonstra certa pequenez de
espírito, medo e subserviência.
A moral escrava nasce da moral judaica
que, escravizada pelos egípcios, se insurge contra seus senhores e Moises
solicita ao faraó sua libertação e de seu povo. Tendo negada a liberdade,
Moises profetiza as pragas e a cada praga ele se posta subservientemente diante
de seu opressor novamente pedindo por sua liberdade. Até que a maior das pragas
se faz ver na pele do próprio primogênito do faraó. Diante da enfermidade
profetizada o faraó se rende e liberta o povo judeu. Uma vez liberto, o povo
liderado por Moises trilha pelo deserto em busca da terra prometida. Contudo o
filho doente morre e os exércitos egípcios empreendem perseguição aos judeus.
Em fuga, Moises, com o auxílio de Deus, abre o mar Vermelho e o exército
perseguidor sucumbe afogado pelas mesmas águas. Sem pátria, sem terra e em meio
ao deserto esse povo perseguido cultua o auxílio, a caridade é bem-vinda e
preserva a vida. Ser capaz de sobreviver em meio a fome, o frio e ao abandono
torna-se sinônimo de bravura. Manter a Fé, ainda que se sentindo solitário e
oprimido é sinal de força. Ergue-se uma moral do fraco, do perseguido, do
pequeno que vence e torna o outro o grande malvado. Mas o principal ícone da
história do povo judeu, está mesmo na figura de Davi. Pequeno, frágil e
franzino toma a frente no embate contra Golias e vence. Deus ajuda o oprimido,
mas parece que a regra se vira do avesso. Torna-se menos importante a bravura e
ganha força a fraqueza. Somente a fraqueza do homem precisa e requer o auxílio
de Deus. A mão de Deus só se faz ver na fraqueza e pequenez. Parece que Deus só
olha para o pequeno que precisa de seu auxílio. Isso se transforma em: é bom
ser pequeno, frágil e escravizado, pois assim Deus nos auxilia. Diz Nietzsche:
Foram os judeus que, com apavorante
coerência ousaram inverter a equação de valores aristocrática (bom = nobre =
poderoso = belo = feliz – caro aos deuses), e com unhas e dentes (os dentes do
ódio mais fundo, o ódio impotente) se apegaram a esta inversão, a saber, “os
miseráveis somente são os bons, apenas os pobres, impotentes, baixos são bons,
os sofredores, necessitados, feios, doentes são os únicos beatos, os únicos
abençoados, unicamente para eles há bem-aventurança – mas vocês, nobres e
poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus, os cruéis os lascivos, os
insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente desaventurados, malditos e
danados...” (NIETZSCHE, 1998, p 26)
Mas foi exatamente essa moral que
prosperou ao longo da história. O cristianismo, nascido no seio do judaísmo e
também oprimido, trilhou por todas as vias do império romano e se disseminou
por toda a Europa. Permitiu, na figura da igreja organizada a legitimidade dos
reinos esfacelados após a queda do império. Se disseminou por entre os povos
pagãos a partir da ideia de evangelização. Aportou no novo mundo trazido como
bagagem nas caravelas do descobrimento. Participou de todo o cerimonial de
posse nas missas do novo continente. E se estabeleceu como verdade e moral
corrente. A altivez é punida com culpa e má consciência. É chamada de egoísmo.
Com isso apaga talvez o traço que mais nos aproxima da imagem e semelhança de
Deus: a grandiosidade. Reprimindo a mais legítima expressão da divindade imagem
e semelhança de Deus, transmuta o próprio Deus em ser indulgente que necessita
da pequenez humana para se tornar mais Deus. Um Deus que precisa da humilhação
humana para lhe oferecer a caridade da salvação.
Se a caridade é um valor tão importante
em nossa sociedade, ainda se torna importante perguntar: Por que a caridade
ainda é necessária? Por que ainda é tão difícil suprir nossas necessidades mais
básicas? Por que isso requer esforço? Não seria apenas um recurso ideológico,
que visando o lucro, privatiza facilidades e as vende por alto preço?
(Reflexão livre) Talvez a moral judaica
não tenha realmente sido erguida com uma finalidade repressora, mas a própria
moral, quem sabe funcionando como um filtro, permitiu a percepção de um ou
outro aspecto de Deus. Olhando desse modo, não é Deus realmente que dita como
deve ser nossa moral, mas a própria moral elaborada em condições bastante
específicas que tenham nos oferecido apenas alguns modos de olhar a Deus.
Valores
É papel da ética trazer à tona os
valores camuflados nas diversas morais das várias culturas, avaliá-los e
estabelecer entre eles uma hierarquia que alcance um caráter universalmente
aceito pelas culturas de onde saíram.
Nem sempre essa tarefa é das mais
fáceis. Todavia, alguns valores têm um grau de importância superior a outros.
Indubitavelmente liberdade tem superioridade frente a iniciativa, ambição e
ousadia. A dignidade humana é superior a estes também e aparentemente da mesma
estatura de liberdade. Lado a lado ainda ficam o amor e a individualidade,
igualdade e equidade. Mas, todos estes precisam se render aos valores atrelados
à vida e à saúde. Ar, água, alimento, abrigo e tudo o que, se aviltado coloca
em risco a vida ou a saúde tem mais importância.
Alguns valores não têm importância em
sí mesmo, mas sempre em relação a outros. Como respeito, justiça, paz. Só há
justiça se os valores forem respeitados. O mesmo no tocante à paz.
Segue-se disso tudo que, para nos
encaminharmos para avaliar a ética de uma conduta, por mais polêmica que ela
seja, devemos encaminhar nosso pensamento para os valores de maior hierarquia,
também conhecidos como princípios. São conhecidos assim pois destes derivam os
outros que são secundários.
Na declaração universal dos direitos
humanos, forjada pouco tempo depois do fim da segunda grande guerra mundial no
século XX, tem na dignidade humana e na liberdade seus alicerces principais.
Pode haver divergência cá e acolá na
hierarquia dos valores. Realmente existem algumas exceções. Para o japonês mais
tradicional o valor da honra é superior a própria vida. Para os povos islâmicos
a submissão a Deus também é superior a vida. É isso que justifica o tal
homem-bomba. Para os povos que creem ardorosamente numa vida após a morte, esta
é mais importante que a vida. Claro que honra para os japoneses e mesmo
submissão para os islâmicos são traduções para a nossa língua que ficam por
demais distantes de seu significado original de grande importância. Tivesse o
mesmo significado e seria um absurdo. Mas a tradução faz com que escape seu
sentido mais profundo e seria necessário um mergulho na cultura de origem para
sondar seu sentido original. Mas não são apenas divergências de traduções ou
sentidos que nos escapam.
Estamos mergulhados em nossa cultura,
traspassados por ela a tal ponto que é difícil para qualquer um se desvencilhar
de sua cultura para fitar a outra sem que existam contaminações. É o que se
costuma chamar de etnocentrismo. Quando observamos a outra cultura sempre em
contraste com a nossa. Balizando a conduta do outro pelos nossos valores e
considerando errado, certo ou irrelevante sem entender que a baliza que se tem
em mente é a da nossa cultura e não a outra nem seus valores. No extremo
acabamos por forjar um EUcentrismo onde tudo é balizado por mim, pelos meus
valores, pelos meus preconceitos, pelos meus medos, anseios e preocupações.
Ficamos, assim, alijados do sentido profundo que o outro poderia oferecer sem a
contaminação da nossa percepção embotada por nossa cultura.
Isso não quer dizer que devemos aceitar
cegamente toda e qualquer ação de outra cultura. Isso nos obrigaria a aceitar
os banquetes de carne humana que Idi Amim Dada e Bokassa frequentemente
realizavam. Mas buscar ultrapassar os limites do que nossa cultura permite
aceitar, e em ir a fundo nas culturas antes de condená-las ao erro.
Mas encontramos algumas divergências
menos características de uma ou outra cultura específica. Elas podem nascer de
um tipo de ideologia alienante. É isso que se costuma chamar de pós-verdade.
Quando se perde o apreço ou o ardor da busca pela verdade e pelos princípios,
acreditando que as verdades são construídas pelo homem em sua narrativa.
Nossa época dá mais valor ao prático e
ao útil do que ao verdadeiro. Essa foi uma escolha histórica não muito difícil
de se mapear. Mas isso não significa que tenha de ser assim sempre. A beleza
pode não ter utilidade, tampouco a verdade, mas são importantes mesmo assim. É
que nossa história recente marcou um embate entre duas ideologias politicamente
antagônicas. O capitalismo e o socialismo ainda hoje rivalizam na disputa pelo
poder e, quanto mais apoio conseguir mais votos pode conseguir. Não se trata de
uma luta entre o bem e o mal, mas apenas de uma disputa ideológica em vista de
poder e hegemonia.
Desde António Gramschi e passando por
Judith Butler a forja de uma ideologia fundada em valores escolhidos
convenientemente a dedo e com propósitos outros foi levada a termo e acabou
encontrando minorias sedentas de aprovação que acabaram forjando verdades sob
demanda. Apenas para aliciar uma boa somatória de tais minorias contra o status
quo.
Lamentavelmente a academia trabalha
consistentemente para consolidar a noção de pós verdade. Mas o preço que
pagamos por isso é a perda do referencial, da verdade e, sobretudo, da ética.
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