Apropriação indébita!
Karl Marx no sec. XIX nos dava conta de uma apropriação feita pela classe
dominante sobre o proletariado de horas de trabalho que seriam desnecessárias
para sua melhor produção. Por exemplo, se um trabalhador levasse cerca de
quatro horas para produzir 10 pares de sapato, o que já seria suficiente para
pagar sua mão de obra, os custos fixos e variáveis de produção, bem como o
lucro, ele, ainda assim, era obrigado a trabalhar outra seis ou sete horas
adicionais pelo mesmo valor, isto é, os donos da produção se apropriavam, além do lucro, das demais
horas do trabalhador. De um modo bem grosseiro essa é a idéia de
“mais-valia”.
Hoje no Brasil e em boa parte do mundo temos certas leis que regulam um
tanto quanto melhor a relação entre as empresas e seus trabalhadores. Tanto
quanto hoje é, em geral, um pouco mais difícil se estabelecer a relação entre
horas de trabalho e produtividade. O valor de um planejamento, do envio de um
email, elaboração de um cronograma... são atividades tão impalpáveis que pode
valer X ou nX. Mas não é exatamente de Marx ou de mais-valia que eu quero
falar, mas sim de uma apropriação de tempo que, por vezes, pode até parecer
espontânea.
Pouco tempo atrás, me lembro que a diversidade de atividades que
executávamos ao longo de uma semana tinha vários propósitos diferentes. Trabalhávamos
e isso tinha relação com satisfação profissional ou com o dinheiro. Estudávamos
e isso tinha relação com a educação, a civilidade, aquisição de conhecimento.
Saiamos com amigos e criávamos relacionamentos sociais. Tínhamos algum tipo de
atividade religiosa e isso era coisa espiritual. O descanso era para a saúde ou
para o corpo, a TV era para entretenimento ou diversão. O passeio no final de
semana era de convívio com amigos, familiares ou puro laser.
Hoje, por outro lado, se estudamos é para ter um ganho competitivo no mercado de trabalho. Se saímos com amigos
estamos, na maior parte das vezes fazendo networking.
A atividade religiosa pode ser aquela que te trará maior influência no ambiente de trabalho. No final de semana o churrasco
é com os colegas do escritório, então não fica bem faltar. A TV serve para
estar bem informado para os negócios
ou para o assunto do cafezinho. Até o nosso sono, muitas vezes tem por objetivo
muito menos nosso descanso físico e mais nos deixar preparados para trabalhar
no dia seguinte.
Parece que todos os propósitos se voltam a uma única e mesma direção: o
trabalho. Deixamos de descansar para
o nosso corpo. Aqui se deve fazer uma pequena pausa para esclarecer um ponto
que parece igual, mas não é. Quando dizemos “por que?”damos conta do motivo.
Quando dizemos “para que?” dizemos o propósito. Claro que o motivo de dormirmos
é descansar o corpo, mas muda o propósito. A diferença que estou apontando é
que antes dormíamos por nosso corpo e
para nosso corpo. Hoje é para o
trabalho.
Outro ponto de nossa vida que fica bastante comprometido é a família
quando fica doente ou mais velha, isto é, quando requer mais atenção. Poucos
chefes ou empresários, ou se podemos dizer cronogramas toleram faltas, atrasos
ou ausências devido a cuidados necessários com pais, ou avos idosos. Uma ou
outra vez isso é tolerado, mas muitas vezes a dificuldade se alonga requerendo
mais tempo e mais dedicação, mas não há nenhuma linha sequer em qualquer
cronograma para “contratempos com doenças de idosos”. Nesse aspecto os idosos
não passam de contratempos que devem ser eliminados. Em nossa organização
social o idoso ou o doente somente cabem, na medida em que são consumidores de
serviços ou de remédios ou de qualquer outro produto. Crianças não! Essas são
um excelente mercado consumidor e ainda de longo prazo. Invista-se nesse
mercado e é lucro na certa! Diria o mercado!
Nossa organização e planejamento social estão centrados no capital e não
na realidade. O trabalho se apropria de nosso sono, pois não dormimos mais pelo
corpo, mas dormimos para que o corpo esteja apto a realizar seu trabalho e não
se torne um empecilho a realização das atividades. Já não comemos para o corpo,
já não estudamos para nos, já não nos divertimos para nos, já não estudamos
para nos, mas para o mercado de trabalho, pra o capital.
Muitas dessas escolhas ficam perdidas em nossa
consciência somente na diferença entre o “por que” e o “para que”. Diferenças
sutis no entendimento, mas que em termos gerais nos levam a outro destino. E ai
voltamos a Marx: alienação. Pouco
temos consciência da diferença de propósito, apenas dormimos, apenas vemos TV,
apenas vamos ao churrasco, apenas nos encontramos com os amigos. Em grande
parte das vezes absorvidos por um propósito que não é nosso.
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