Filosofia como ferramenta profissional

Filosofia como ferramenta profissional

(Por Jadir Mauro Galvão) 

Introdução

Nossa intenção aqui é demonstrar que nossa atual maneira de pensar o mundo das empresas foi fruto de uma escolha que á sua época foi bastante sensata, mas que acabou por abandonar outras tantas e ricas formas de pensar. Mais do que isso, compreender que nosso atual estilo de pensamento não responde adequadamente às demandas de nossa época. Será preciso lançar mão das ferramentas da filosofia, no intuito de reorganizar nossa compreensão sobre nosso tempo. As ferramentas que a filosofia proporciona servirão como trunfos no atual jogo corporativo, mas mais do que nos permitir um bom posicionamento no jogo atual, nos possibilitará ditar novas regras para o mesmo jogo. Regras mais sensatas do que as atuais, mais honestas e, sobretudo, mais humanas. Para tanto precisaremos percorrer por algumas dessas tantas correntes de pensamento, verificar quais foram as condições que influenciaram nossas escolhas, bem como apontar quais foram nossas renúncias e que preço elas tiveram em nossas vidas. 


1.      Origem histórica


Empresas, como conhecemos nos dias de hoje, só começaram a se formar depois de uma transformação em nossa organização social ocorrida por conta da revolução industrial, concomitante com a revolução francesa. Até então a filosofia gozava de certo prestigio e circulava livremente pelas rodas da alta sociedade. Ainda que não houvesse unidade de pensamento, todas as correntes filosóficas partilhavam a importância da reflexão profunda. Digladiavam-se entre sí no embate de pensamentos os Idealistas metafísicos, os Empiristas, os Utilitaristas entre tantas correntes filosóficas contemporâneas. O modelo de sociedade vigente na época era monárquico. A sociedade era dividia entre nobreza e plebe. As camadas sociais ainda permitiam divisões como o clero, os homens de armas e os de ofícios. Alguns outros muito poucos giravam ao redor dos castelos e da nobreza exercendo influência sobre esse poder central. Por mais démodé que nos pareça, esse tipo de organização perdurou por mais de mil e quinhentos anos e alcançou horizontes em todos os cantos do mundo.
Essa sociedade monárquica valorizava a arte, a música a religião, o sagrado, a elegância, o comportamento nobre... tinha na metafísica sua filosofia predileta e mesmo que dessa filosofia não se retirasse resultados práticos, só o rebusco das abstrações já conferiam certo prestígio ao seu elaborador e, com isso, posição social. Era um modelo que relegava a população fora dos altos círculos sociais, uma condição bastante miserável. Sem estudos, sem dinheiro, sem terras cultiváveis expostos ao frio e a fome. Podia-se morrer de fome com a cabeça recostada em um saco de farinha, pois o ofício da panificação era restrito a classe dos padeiros ou, as rodas dos palácios. Podia-se morrer de frio ao lado de uma ovelha pelo puro desconhecimento dos ofícios da tosquia, do curtume e da fiação.
A mudança no modelo de organização social sofreu profunda influência dos pensadores Iluministas que viam na ciência, nos ofícios e nas atividades práticas muito mais interesse, sobretudo social, do que uma metafísica que discutia sobre o Eu, sobre o Absoluto, sobre a Vontade ou outra abstração qualquer. Entre os que mais prosperaram com o novo modelo o Reino Unido era sede do pensamento filosófico Utilitarista na figura de Jeremy Bentham. Bebiam da filosofia utilitarista os mais brilhantes economistas que deram o tom e o brilho de uma sociedade que visava a produção do excedente, a expansão de fronteiras, o lucro e a prosperidade. Criaram-se escolas de ofícios que proviam os profissionais para trabalhar nas fábricas e mesmo em escritórios que controlavam a produção, seu escoamento, bem como a aferição de lucros e a destinação de investimentos.
Esse novo modo de olhar para a sociedade e para o sistema de produção de riquezas acabou por produzir resultados materiais expressivos. A produção em escala dos mais diversos bens materiais como vestuários, alimentos, e toda a sorte de utensílios, bem como o emprego remunerado que podia gerar a renda necessária para aquisição desses bens, organizou a sociedade de outro modo e deslocou o centro que antes era ocupado pelo castelo agora para as fábricas.
A grande expansão econômica acabou por coroar também um modelo de pensamento. O importante agora é o que é útil, prático, as ciências que permitem o desenvolvimento de novos materiais, novas tecnologias, novas energias e todo o mais que possa prover produtos, vendas, renda e, sobretudo, lucro para uma nova classe emergente de pessoas que não nasceram nobres. A nobreza ainda era valorizada, mas somente na medida em que trabalhava e produzia ou gerenciava uma organização produtiva. O trabalho começa a ter mais importância que um título de Conde, Duque ou Barão. Mesmo os antigos nobres experimentam uma abastança da qual jamais haviam imaginado. Incluir socialmente tornou-se bastante lucrativo. Empregados livres oneravam a cadeia produtiva menos do que escravos.
O modelo de pensamento prático, utilitarista e de ofícios era mais produtivo do que todos os outros somados. Fica então acordado que este é “melhor modo de pensar”. O mais produtivo, mais lucrativo, que produz mais riqueza e, com isso, felicidade. Ficam então proscritos outros modelos de pensamento. Agora temos os pensamentos úteis e todos os outros se mudam agora em sua antítese: inúteis. Para esse lado se mudam de supetão a metafísica, a arte (não lucrativa), o sagrado, o pensamento reflexivo profundo... Mesmo a busca pela verdade fica suprimida. Antes de se perder tempo tão precioso na busca pela verdade pensemos primeiro em sua utilidade. Mesmo que algo não seja realmente verdadeiro, se se mostra útil, ainda que durante certo tempo, acaba sendo preferível. O ócio até então bastante cultuado se estabelece como sinônimo de preguiça e fraqueza. Consolida-se então a sociedade da cultura do “Tempo é dinheiro”.
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2.      Carta de valores corporativos

Sem que houvesse necessidade de uma promulgação oficial, tão pouco de um documento escrito, estabelece-se um extenso conjunto de valores, crenças, práticas de conduta aceitos, cultuados e valorizados num mundo remodelado e reestilizado. Empenho, dedicação e esforço; eficácia, eficiência e produtividade; comprometimento, confiança e profissionalismo. Fidelidade para com empresa. Negligenciar o sigilo era o mesmo que traição e sua punição era pior do que a excomunhão: demissão por justa causa.
O trabalho não é para prover a vida dos recursos que ela necessita, mas, ao contrário, é a vida que provê os recursos que a empresa necessita. O desempregado é somente um ser com uma semivida. Inútil, ineficaz, inepto. Sua vida é sem valor. Oferecer um emprego era misericordioso. Ato divino de uma religião onde o olimpo era nobremente mobiliado e os deuses eram os diretores, presidentes, superintendentes onde eram tomadas as decisões sobre os rumos da humanidade.
Um bom emprego conferia prestígio social e recobria de responsabilidade o seu ocupante. Esse critério também promove uma suprema inversão de valores: não são as empresas que servem a sociedade, mas a sociedade é que serve às empresas. Visto desse ângulo é possível observar e compreender a conduta de inúmeros dos nossos gestores. Se precisar escolher entre manter o trabalho de uma centena de trabalhadores, seu meio de sobrevivência e sua dignidade e conseguir um aumento de produtividade automatizando ou robotizando uma operação, já sabemos qual será sua escolha. Se tiver de optar entre manter ou não um trabalhador menos produtivo, ainda que a equipe renda mais com sua presença e tenha uma melhor qualidade de vida no trabalho, já sabemos qual opção será mais bem vista. O paradigma do lucro e da produtividade constrói um conjunto de “verdades” que só fazem sentido se observados a partir de seu próprio critério. Uma doença que afasta um profissional de suas atividades produtivas é temporariamente tolerada, contudo se ela derrubar os índices de produtividade por tempo maior será preciso demitir o mesmo até para que “ele possa cuidar de sua saúde em tempo integral“.
Cada empresa nutre maior apreço por um conjunto seleto de valores em detrimento de outros e essa escolha edifica um conjunto de condutas aceitas tanto quanto outras malvistas. São estes os critérios que definem quem irá progredir ou não dentro dessa organização. Colidir ou confrontar essas condutas é confrontar os valores escolhidos e, com isso, afrontar o critério particular de verdade. O termo Verdade aqui é tomado apenas em sentido didático. Verdade não pode ser nunca particular, mas esse critério é pouco útil para as empresas que mudam seus gestores. É preferível uma verdade mais plástica que se adapte ao gestor, ao momento econômico da empresa. Revoltar-se contra essa máxima é improdutivo.
É claro que esse movimento no sentido inverso da verdade retira grande parte do sentido original de uma empresa: sua razão social. Muitos trabalhadores percebem esse critério de verdade particular e acabam por justificar seu próprio critério de verdades e trabalha orientado neles, mas somente se o confronto das suas verdades não ultrapasse os limites das verdades da empresa. Surge aqui uma hipocrisia bastante generalizada onde são confrontadas as verdades de cada um ou de pequenos grupos. Surgem as panelinhas, os conflitos e cada qual calcado em “sua” própria verdade acaba por se justificar. Cada grupo, por assim dizer, remando para o seu lado o mais distante do lado do outro. Nesse ponto cabe ao gestor o pulso firme de fazer com que todos orientem seus esforços no sentido contrário de suas próprias verdades para alinhá-los na direção das verdades da empresa, provocando assim insatisfação generalizada.
Se esse tipo de conduta reconduzisse a todos na direção de uma verdade realmente verdadeira, penso que todos se beneficiariam, mas nesse caso todos acabam por se prejudicar, inclusive as organizações. Essa é uma das dificuldades de que padecem a maioria das empresas. Esse tipo de conduta produz uma competitividade corrosiva. A ideia de competitividade original que era a de selecionar os melhores profissionais acaba por ser fomentada dentro do ambiente de trabalho entre os melhores, que acabam por não dar de si o seu melhor por não ver o menor sentido nisso. É nesse ponto que a filosofia pode e deve entrar com seu papel de reflexão conciliadora.
    

3.      O resgate da filosofia

Algumas das ocupações mais tradicionais da filosofia é buscar o sentido das coisas. Não uma significação particular subjetiva, mas um sentido próprio e genuinamente verdadeiro que por si só se impõe como valor e arrasta as diversas condutas para a mesma direção por força de sua própria autoridade de verdadeira. Por outro lado, uma das coisas que mais reduz o desempenho profissional é justamente a falta de sentido experimentada por quem executa a atividade profissional mecanicamente.
Experimentamos toda sorte de conflitos que geram estresse, desmotivação e falta de engajamento. As empresas pretendem excelência profissional com o menor custo possível. Querem profissionais criativos, mas que sigam os processos previamente estabelecidos. Querem que seus faturamentos aumentem sem ferir a sustentabilidade. Querem obter mais lucro, mas com o menor esforço.
Essas inconsistências podem não revelar suas contradições internas se olhadas pelo paradigma utilitarista, mas uma reflexão mais profunda facilmente revelará a completa falta de sentido dessas e de inúmeras outras práticas do mundo corporativo e que hoje são bastante insuspeitas. Mas a reflexão profunda ficou proscrita junto com a metafísica, a arte e o sagrado. Será preciso oferecer um indulto para que ela possa resgatar seu próprio valor. O próprio estilo de pensamento utilitarista não conseguirá sozinho resgatar a ideia de verdade, tampouco observar suas próprias inconsistências internas. A utilidade tem características próprias e usos próprios que foram bastante uteis em determinada época e em determinadas circunstâncias, mas é incapaz de oferecer respostas adequadas para coisas que ultrapassam sua competência. É preciso resgatar do calabouço não somente a filosofia, mas uma porção de outras maneiras de pensar que vão muito além do pensamento utilitarista. Não será preciso deixar de pensar de modo utilitário, mas apenas utilizá-lo para aquilo a que ele se presta melhor. Para todo o restante podemos ter um conjunto de outros modos de pensar, mas ricos e elegantes.




REFERENCIAS

BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1842

GALVÃO, Jadir Mauro. Filosofia nas empresas. São Paulo: Paulus, 2014

ROBINSON, Joan. Liberdade e necessidade. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Coleção Os Pensadores)




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